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Resenha do filme Dogville, de Lars Von Trier.

Lars Von Trier é um cineasta e roteirista de origem dinamarquesa, foi vencedor de diversos prêmios europeus de cinema em sua carreira. Seu filme de estreia foi Befrielsesbilleder (1982), sendo ele uma obra de transição e que encaixa-se na proposta de seus curtas, mesmo já se relacionando com a estética de seus filmes seguintes. Mas seu maior reconhecimento veio com seu oitavo filme, Ondas do Destino (1996). Trier dirigiu diversos filmes, com destaque especial para Anticristo (2009), Melancolia, (2011), Ninfomaníaca I e II (2013), Dançando no Escuro (2000) e Dogville (2003).
*Atenção, pois a resenha contém alguns spoilers.*
Dogville se passa em uma modesta cidade ou vila de mesmo nome, o filme é dividido em dez partes – incluindo o Prólogo, onde são mostrados os resumos do que acontecerá em cada capítulo, nos relevando o desfecho de cada um deles, mas isso de forma alguma atrapalha o desenrolar da trama e nossa percepção sobre ela.
Tudo começa com um narrador que nos introduz dentro do filme com a seguinte frase: “Esta é a triste história da cidade chamada Dogville.” Logo depois nos é mostrado o local onde a cidade se encontra, nas Montanhas Rochosas dos EUA. Assim que entra a primeira cena, já é causado um certo estranhamento por não se tratar de cenários comuns, pois a cidade não passa de um palco teatral, onde as casas, ruas e estabelecimentos são demarcados no chão, sem paredes e contando apenas com detalhes que configurem esses lugares, tais como sofás, camas, o sino da igreja etc., nem mesmo o cachorro, personagem importante dentro da obra, é de “verdade”, só se ouve seus latidos e vê-se a demarcação do lugar onde ele estaria. Isso é um grande exemplo desse jogo perceptível na ficção contemporânea, sobre o que é real.


O enredo do longa gira em torno da chegada da personagem Grace à Dogville, que é fugitiva de um grupo de gângsteres e tenta procurar refúgio, e a mudança que ocorre das aparentes boas pessoas que lá viviam. Grace destoa dos habitantes da cidade, que são pessoas simples e a maioria pobre; vestida com suas roupas caras e com aparência limpa, cabelos e pele bonita. Tom, que pode ser considerado o co-protagonista, se sensibiliza com sua situação e resolve interceder por Grace procurando um modo dos moradores de Dogville aceitarem-na. Tom considera-se um filósofo em desenvolvimento e almeja ser escritor. Ele acredita que a vinda desta estranha poderia ajudar a desenvolver a empatia e companheirismo das pessoas que lá viviam, pois acredita que essas pessoas precisavam desenvolver mais o seu lado humano, o que acaba acontecendo, mas de um modo deturpado, pois o que há de pior na natureza humana é colocado para fora por essas pessoas.


Depois de uma reunião organizada por Tom, a permanência de Grace na cidade é aceita, porém, ela teria de devolver-lhes algo em troca dessa proteção: “Dogville lhe deu duas semanas. O que dará a ela?” Desse modo, Tom tem a ideia de pedir para Grace ajudar as pessoas em “algo que não precisa ser feito”, ela começa a fazer os trabalhos que gostariam que fosse feito, mas que não achavam necessário ou auxiliá-los em qualquer de suas necessidades. O que aparentemente parece justo, acaba se tornando uma grande exploração. Aqui entra a proposta de Lars de criticar o American Way of Life, pois este é um dos filmes de sua trilogia que têm o intuito de criticar as políticas econômicas e sociais dos EUA.
Grace pensa estar vivendo em uma situação de ajuda mútua, o que acaba mudando quando aparece um policial com um aviso de Desaparecida com o seu rosto estampado, isso causa uma grande inquietação entre os moradores de Dogville, e que acaba se agravando com uma segunda visita de policiais mudando o cartaz de “desaparecida” para “procurada”. É a partir disso que o sofrimento maior e exploração de Grace começa. Ela passa a servir de escrava para essas pessoas, com a desculpa de eles estarem protegendo-a e que o risco que corriam por estarem fazendo isso aumentara.
Os abusos sofridos por Grace ultrapassam a exploração de seu trabalho e acabam se tornando sexuais. Grace é estuprada, uma cena chocante tanto pelo ato de violência, quanto pelo cenário do filme: sem paredes. Enquanto Grace é violentada dentro da casa de Chuck, os moradores estão do lado de fora lidando com um policial (por isso ela não poderia gritar), e a falta de paredes nos faz ter a percepção de que as pessoas podiam ver o que estava acontecendo/estavam fazendo, mas preferiam fingir que não. Ela tem seus únicos objetos de estima destruídos (os bonecos que conseguiu comprar na loja de Ma Ginger) e acaba tornando-se literalmente uma escrava. Ela tenta fugir, mas acaba sendo mais uma vez abusada e trazida de volta à cidade. É quando fazem-na viver com uma coleira no pescoço presa a uma roda pesada, para que nunca mais consiga fugir. 
Tom mesmo sabendo de tudo e tendo um relacionamento de paixão recíproca com Grace, não faz muita coisa para ajudá-la, e depois de ser rejeitado, pois ela só queria ter relações com ele estando em liberdade, acaba denunciando-a aos gângsteres, que por sua vez, tratam-se de uma gang chefiada pelo pai dela. Eis o momento que ocorre toda a vingança de Grace aos cidadãos de Dogville. Os quais um a um vão pagando o preço das explorações que a fizeram sofrer.


Dogville, assim como os outros filmes de Lars Von Trier, precisa ser assistido e é importante por além de suas inovações, ter uma estética própria, destoar das produções comerciais hollywoodianas e tratar os temas que caracterizam a arte contemporânea, como no já citado uso de um palco teatral onde o filme é gravado. A falta de uma cidade “real” vista nos filmes em geral aparenta ser uma grande brincadeira sobre a ficção. O filme traz um dos grandes temas da arte e da vida: a humanização/desumanização, e faz uma crítica à sociedade burguesa. Por esse motivo, é recomendado àquelas pessoas que gostam de produções que trazem histórias desafiadoras, que precisam ser assistidas mais de uma vez, para melhor absorção e reflexão dos temas tratados.

Esta resenha foi para obtenção de nota na disciplina de Literatura Brasileira Contemporânea, que por sinal foi a minha favorita esse semestre (até porque é ministrada pelo meu profº favorito <3). Como eu ando muito sumida daqui justamente por conta da faculdade, resolvi aproveitar a resenha desse filme e postá-la. Conforme já havia falado em outro post, gosto muito dos filmes do Lars Von Trier e essa aura sombria que os permeia. Por isso, espero que tenham gostado da resenha, e, mesmo com os spoilers rsrs, saibam que só mesmo assistindo para ter essa experiência inigualável.
Minhas férias estão chegando e ficarei mais presente por aqui, um abraço. <3

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