Resenha: Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha.


Glauber Pedro de Andrade Rocha é um cineasta brasileiro nascido em Vitória da Conquista, Bahia, em 1939. Além de cineasta também era escritor e foi um dos líderes do Cinema Novo, o qual é um movimento vanguardista "de renovação da linguagem cinematográfica brasileira, marcado pelo realismo e pela crítica social do país. Seus filmes caracterizam-se pela concepção de cinema autoral e pelo baixo orçamento de produção, coerente com as condições do Brasil da época." Desde o Ensino Médio tem contato com o mundo da sétima arte, participando de clubes de cinema na Bahia, bem como organizando no colégio espetáculos de dramatização de poemas modernistas e escrevendo críticas em jornais.
Em 1958, Glauber viaja pelo sertão nordestino, o que o faz conhecer e se aprofundar mais na cultura popular. No ano seguinte, lança o curta experimental Pátio e filma Cruz na Praça, obra inacabada. Em 1961, inicia as gravações de Barravento, exibido no Brasil apenas em 1967, mesmo ano de lançamento de Terra em Transe, um de seus longas mais notórios. Em 1963, publica o livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro e, no seguinte, lança seu filme mais importante: Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Nesta película, o cineasta amplia as suas críticas sociais trazendo à tona a miséria do sertão associada à exploração do trabalho do povo sertanejo e à religiosidade exacerbada. 
Em Deus e o Diabo na Terra do Sol é presente uma teatralidade que nos remete às estórias de cordel, pois de acordo com o teórico Ismail Xavier em Sertão Mar: Glauber e a estética da fome (2007): “[...] câmera e atores se deslocam de modo a traduzir visualmente o que é dito nos versos, numa representação que funde o espaço das imagens e o espaço da canção de cordel.” Desse modo, a trilha sonora do filme também é um elemento importante no que concerne à narrativa, pois em conjunto com as cenas que nos são apresentadas é possível ter o entendimento completo do enredo da história.

Com Glauber Rocha, Yoná Magalhães fez história no filme "Deus e o ...

O filme narra, em primeiro plano, a história do vaqueiro Manuel e sua mulher Rosa — ambos vivem em condições muito difíceis, onde falta tudo e o trabalho mal lhes dá o que comer. Um dia, resolve ir ao encontro de seu patrão, Coronel Moraes, para tentar vender o pouco de gado que tinha, entretanto é surpreendido pela afirmação de que o gado que lhe pertencia havia morrido por causa da seca. Manuel sabe que seu patrão está mentindo e que os animais que morreram na verdade eram dele, mas é confrontado pela autoridade do fazendeiro rico que alega ter a "justiça" ao seu lado. A justiça, nesse caso, tem a ver com o poder e o dinheiro, os quais não existiam para o vaqueiro, por isso sua palavra não possuía valor. Manuel fica revoltado e acaba matando-o com seu facão e fugindo para sua casa, isso faz os capangas irem atrás dele e matarem a sua mãe. Ele consegue matá-los, mas depois disso se encontra perdido e vai com sua esposa Rosa à procura do beato Sebastião, homem da fé que acredita ser santo e que reúne fiéis pobres prometendo-lhes o conforto de conseguirem a justiça pelo que passam. 

Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha - Revista Moviement

Versátil / Divulgação

Chegando ao monte onde o beato reunia os fiéis, Manuel acaba se encantando pela ideia dos discursos de Sebastião, que apelavam para o fim do sofrimento com a descoberta de uma ilha onde se poderia viver confortavelmente.
“Agora eu digo, o outro lado de lá, deste monte santo, existe uma terra onde tudo é verde, os cavalo comendo as flor e os menino bebendo leite nas água do rio. Os homem come o pão feito de pedra e poeira da terra vira farinha. Tem água e comida, tem a fartura do céu e todo dia quando o Sol nasce, aparece Jesus Cristo e Virgem Maria, São Jorge e meu Santo Sebastião.”
Sebastião também falava de modo subversivo sobre o poder contido pelas elites e a opressão que eles exerciam, como podemos ver no seguinte monólogo:
“[...] é preciso mostrar aos donos da terra o poder e a força do santo […] O homem não pode ser escravo do homem, o homem tem que deixar as terra que não é dele, e buscar as terra verde do céu. Quem é pobre vai ficar rico no lado de Deus, e quem é rico vai ficar pobre nas corcunda do inferno. E nós não vai ficar sozinho porque meu irmão Jesus Cristo mandou um anjo guerreiro com sua lança para cortar as cabeça dos inimigo.”
No entanto, o beato acaba se tornando radical demais, fazendo exigências sobre-humanas para Manuel, como subir o monte de joelhos com uma pedra na cabeça. Por essas e outras atitudes, Rosa não aguenta mais vivenciar aquilo e pede a Manuel para abandonarem o grupo, o qual se nega pois estava completamente imerso naquele lugar e crente nos poderes do beato. Rosa é ciente de que há falhas nas atitudes e palavras de Sebastião, pois viver apenas de esperanças alimentadas por ele não traz eficácia para resolver os problemas daquelas pessoas. Porém, Sebastião incomoda a elite local, o que faz com que o próprio padre da cidade chame Antonio das Mortes, um matador de aluguel, para assassinar Sebastião, pois de acordo com ele uma parte do povo já não estava mais contribuindo com dinheiro para a igreja. Nisso podemos ver uma crítica à face obscura da religião, que muitas vezes usa fiéis apenas para obter mais poder.
Sebastião acaba sendo morto por Rosa, pois em um de seus delírios pede para que Manuel sacrifique uma criança e depois a sua esposa num modo de se elevar para alcançar a ilha prometida. Assim, ela aproveita um momento de descuido para pegar sua faca e matá-lo. É interessante vermos que a dicotomia de Deus e Diabo não é, digamos, pura. Pois, no que concerne a Deus, a religião, a esperança, é mostrado também sua face obscura; e com relação ao Diabo, o assassino, o cangaço, também é mostrada a parte humanizada e que busca fazer o bem. Afinal, o bem e o mal são tão intrínsecos do ser humano que se torna muitas vezes difícil separar um do outro.

Deus e o Diabo na Terra do Sol” na UFGD - O Progresso

Após a morte do beato, Manuel e Rosa encontram Dadá e Corisco, um cangaceiro do bando de Lampião, o qual era um de seus homens mais próximos. O acontecimento se passa três dias após a morte de Lampião, que morreu nos braços de Corisco, também por isso ele acredita que o espírito de Virgulino vive também dentro dele. Assim, a sede de vingança contra os governantes, policiais e os ricos se torna cada vez maior, o que faz a existência do cangaceiro se resumir a apenas isso. 
Depois de encontrá-los, Manuel pede para fazer parte de seu grupo, pois com o cangaço ele vê a oportunidade e continuar o trabalho de Sebastião, tornando concretas as suas ideias. Corisco o aceita e o rebatiza de Satanás. Assim, o grupo vai em busca de vingança e de justiça a seu modo.
Após alguns acontecimentos, Antonio das Mortes os encontra para finalizar o seu trabalho e assim temos o final dessa grande obra que trata acima de tudo do homem, do seu poder de fazer o bem, o mal, o seu destino, os destinos dos outros; bem como da fome, da miséria, das injustiças.

Havia bastante tempo que queria ver esse e os outros filmes do Glauber Rocha, pois é uma honra para nós termos um gigante desses no nosso país. Como sou nordestina, acredito que esse filme mexeu ainda mais comigo, pois sempre fui encantada com as histórias sobre o cangaço e pelas estórias de cordel. Esse com certeza é um filme recomendado para quem deseja conhecer e valorizar mais o cinema brasileiro e para quem busca uma boa história sobre o nordeste. 
Para quem quiser assistir, ele está disponível tanto para baixar no filmescult.net, quanto no youtube.

Espero que tenham gostado da resenha. Abraço e até a próxima. 🌵💛

Comentários

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  2. Gostei bastante da resenha, me faz pensar o quanto as pessoas podem ser influenciadas a fazer algo movidas até mesmo por sentimentos, sejam bons ou ruins. A esperança de uma vida melhor ou de mudar a sua situação desfavoravel, pode levar o ser humano a fazer coisas de forma tão cegas que suas atrocidades ficam imperceptíveis a ele.Bom, parabens e até a próxima!

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  3. Grande filme, muito necessario para compreender uma grande parte da sociedade nordestina, e resenha de igual nível, soube tratar dos pontos com muita lucidez deixando o leitor, que ainda nao viu o filme, decidido de vez a assistir. Parabéns.

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