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Niketche: uma história de poligamia, de Paulina Chiziane.

Paulina Chiziane nasceu em 4 de junho de 1955, é considerada a primeira romancista moçambicana, apesar de não aceitar essa designação, pois prefere ser chamada de contadora de estórias. Em entrevista, Chiziane explica que ser rotulada de romancista faria com que ela ficasse presa a padrões de escrita europeus e que, acima de tudo, ela busca uma liberdade de escrita, para que possa usar da oralidade e das histórias contadas ao redor das fogueiras, que tanto fazem parte de sua cultura. Também afirma que não se considera uma ficcionista, pois usa da realidade que conhece para escrever suas estórias: “Sou contadora de estórias e não romancista. Escrevo livros com muitas estórias, estórias grandes e pequenas. Inspiro-me nos contos à volta da fogueira, minha primeira escola de arte.”
Chiziane nasceu nos subúrbios de Maputo, chamada anteriormente de Lourenço Marques. Nasceu em uma família protestante e que falava as línguas Chope e Ronga, aprendeu a língua portuguesa apenas depois de frequentar a escola. Começou a estudar Linguística na Universidade Eduardo Mondlane, porém não chegou a concluir o curso.
Foi participante ativa na cena política Moçambicana como membro do FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), em que militou durante sua juventude. Deixou, contudo, de se envolver na política para se dedicar à escrita e publicação de suas obras. Entre os motivos de sua escolha estava a desilusão com os rumos políticos que o partido FRELIMO estava sendo levado pós-independência, sobretudo em termos de ambivalências ideológicas internas, no que diz respeito às políticas sobre mono e poligamia, e ainda pelo que via como hipocrisia em relação à liberdade econômica da mulher.
Iniciou suas atividades literárias em 1984, com contos publicados em jornais moçambicanos, histórias que falam da vida em tempos difíceis, mas da esperança, do amor, da mulher, e de África.  Em 1990, lançou seu primeiro livro, Balada de Amor ao Vento, sendo considerada a partir de então a primeira mulher moçambicana a publicar um romance.
O maior sucesso literário de Chiziane surge com Niketche: uma história de poligamia, onde Paulina faz um apelo às mulheres para se unirem e se tornarem independentes. O livro foi vencedor do prêmio José Craveirinha de Literatura em 2003, alguns anos após seu lançamento. Paulina também foi indicada ao prêmio Nobel em 2005, pela característica de militância mostrada em seus livros. Em 2014, Paulina foi agraciada pelo Estado português com o grau de Grande Oficial da Ordem Infante D. Henrique, como reconhecimento ao mérito que a obra da autora trouxe à cultura lusófona. Chiziane dedica o prêmio às mulheres moçambicanas: “Quero encorajar o meu povo, as mulheres da minha terra: por muito difícil que as condições sejam, caminhem descalças e vençam”.
Apesar de seu excepcional talento para a escrita, Paulina não é tão reconhecida e muito menos lida como deveria, foi por esse motivo que eu e minha amiga e colega de sala Ana Carla resolvemos escrever um artigo sobre Niketche, que estou condensando aqui para que vocês também conheçam.
Em Niketche: uma história de poligamia, Rami, a protagonista, é uma mulher de quarenta anos que é casada com Tony, um oficial da polícia. Rami sente muita falta da presença de seu marido, pois a maior parte do tempo ele passa fora de casa e é a partir daí que ela começa a suspeitar que ele a trai. Depois de algum tempo, ela de fato descobre que Tony possui vários casos extraconjugais. Em virtude desse fato, Rami toma a decisão inusitada de ir falar com as amantes do marido e então, ela vai descobrindo uma a uma até concluir que o marido mantem mais quatro mulheres além dela. A raiva, o sofrimento, a revolta, a humilhação possuem Rami por um longo período. Após uma reflexão do ocorrido, ela começa uma longa jornada de mudança de perspectiva, entrando em um processo de autoconhecimento e análise de si própria e de sua cultura.
A personagem aproxima-se dessas outras quatro mulheres aos poucos e vai criando uma certa empatia por elas, percebendo que a situação difícil em que ela se encontrava não era pior do que a situação dessas outras quatro mulheres, pois ela ainda era a mulher oficial de Tony perante a lei e a sociedade, enquanto as outras, não passavam de “casos” fora do casamento. Rami se comove com a problemática comum às mulheres de seu país, que suportam o peso do abandono, do desprezo, das atribulações na criação dos filhos, humilhações e violências. Deste modo, partilhar seu marido significa restituir a dignidade das companheiras. Os terapêuticos encontros que Rami mantém com essas mulheres lhes trazem trocas de experiências, elas descobrem a força da amizade, a “sororidade” (a sororidade é a união e aliança entre mulheres, baseado na empatia e companheirismo.Seu conceito está fortemente ligado ao feminismo, por esse motivo vem entre aspas, pois Paulina Chiziane esclarece que faz uma literatura feminina, e não nos moldes do feminismo tradicional), sendo resgatada e a capacidade de acreditarem em si mesmas.
É, assim, elaborada uma comunidade imaginada e fraterna entre essas mulheres, que espalhada pelo mundo sobrevive, em sua grande maioria, sendo disformes e invisíveis, essas companheiras enfrentam semelhante condição de inferioridade dentro e fora das fronteiras de Moçambique. Por isso se torna alegórica a pergunta diante do espelho: “Espelho meu, existe neste mundo mulher mais triste do que eu? Há. Há milhões em todo o mundo.” (CHIZIANE, 2002, p. 247). A decisão de Rami de continuar dividindo o seu marido vem da compreensão de que seria uma atitude profundamente desumana condenar os filhos e as demais esposas de Tony a restante quota miserável do país.
Niketche é uma representação da mulher universal, de todas as culturas, de diversos moldes de organização familiar, das formas de dominação do homem sobre a mulher. Paulina Chiziane aponta de forma sutil as nuances culturais moçambicanas, como também denuncia todas as formas de abuso, superioridade e exploração masculina sobre o sexo feminino, mas suas reflexões vão muito além disso. Durante a narrativa, as suas personagens buscam uma saída para a situação em que se encontram. Cada uma das mulheres de Tony vai ingressando no mercado de trabalho construindo assim, a independência financeira e, ao mesmo tempo, desconstruindo o mito do macho, poderoso e indomável. Elas também, uma a uma, vão se recuperando psicologicamente, casam, apoderam-se de espaços, criam novas relações, rompem com a experiência de obediência e estabelecem partilhas. Niketche é uma dança do norte de Moçambique, do povo macua, dança da fertilidade, da sexualidade, é parte componente dos ritos de iniciação. A nova mulher é apresentada à tribo, pronta para o amor, para a fertilidade e para assumir a sua vida. O chamado da grandiosidade da partilha, da roda, da dança, que supera as amarras machistas e inquisitoriais do colonizador.

Paulina se tornou minha escritora moçambicana favorita automaticamente, junto com o Mia Couto, claro. Ter tido a oportunidade de ler e fazer um trabalho sobre uma de suas obras foi um privilégio pra mim. Esse artigo foi fruto de uma disciplina que tivemos ano passado, no IV bloco: Literatura Africana de Língua Portuguesa, e este ano eu e Carla o apresentamos no nosso III Simpósio Nacional de Letras, evento que meu curso e a UESPI realizam. Foi minha primeira experiência apresentando artigo em um evento, mas deixei o nervosismo de lado e consegui algo que me fez sentir muito orgulho de mim. Além disso, usei um dos artigos da Virginia Woolf como referencial teórico, no que se tratava de como as mulheres eram vistas na obra. Juntei duas rainhas num artigo só, haha.

Sei que ando muito sumida, mas esse está sendo um ano muito puxado na faculdade, com muitas leituras e muitos trabalhos, por isso só agora consegui postar alguma coisa. 
Espero que vocês tenham gostado da postagem e, como sempre falo, se interessado em ler esse livro e essa escritora que PRECISAM ser conhecidos. Um grande abraço (estava com saudade daqui, rs) e até a próxima, que espero não demorar tanto para acontecer! 💜


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